Clèmerson Merlin Clève publica artigo no portal jurídico Jota

O advogado e professor Clèmerson Merlin Clève, sócio fundador do escritório, escreveu o artigo “STF, liberdade religiosa e pandemia”, publicado nesta segunda-feira (12) pelo portal jurídico Jota. No texto, Clève analisa a decisão do plenário do STF, que autoriza governos e municípios a proibirem a realização de cultos e missas no país enquanto durar a fase mais grave da pandemia de covid-19. “A Suprema Corte vem construindo, no contexto do horizonte pandêmico, uma jurisprudência da crise, implicando a definição de parâmetros e balizas extraordinários capazes de orientar a atividade dos agentes públicos”, defende. Confira o artigo na íntegra:

Foi concluído na quinta-feira (8/4) o julgamento, iniciado no dia anterior, da ADPF 811 aforada pelo PSD contra o Decreto n. 65.563/2021, do estado de São Paulo, que vedou a realização de cultos, missas e demais atividades religiosas de caráter coletivo.  Por nove votos a dois, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou improcedente a ação. Abriu divergência o ministro Nunes Marques que, em outra ADPF, não só admitiu a legitimidade ativa de determinada entidade contrariando precedente do tribunal que contou, inclusive, com o seu voto, como concedeu naquele caso polêmica liminar, tendo sido acompanhado pelo ministro Dias Toffoli. As manifestações dos ministros que, acompanhando o relator, ministro Gilmar Mendes, formaram maioria foram bastante eloquentes. A ADPF seguiu o rito do art. 12 da lei 9.868, de modo que envolveu já decisão de mérito que, certamente, orientará as futuras decisões da Corte, assim como de todo o Judiciário brasileiro.

A grave situação sanitária pela qual passa o mundo e, particularmente, o Brasil foi a tônica dos votos. Ninguém desconhece que enfrentamos a pior crise de saúde dos últimos cem anos. De fato, contando com pouco menos de 3% da população mundial o Brasil acumula algo em torno de um terço das mortes decorrentes da pandemia causada pelo Covid-19. O país demorou para tomar medidas adequadas para o combate à pandemia, a União omitiu-se ou deixou de assumir o seu natural papel de liderança e coordenação das políticas de enfrentamento reclamadas pelo federalismo cooperativo, não abraçou a estratégia de vacinação em massa no momento mais favorável, deixando estados e municípios com os ônus decorrentes da inércia, inclusive considerado aquilo que diz respeito aos limites do sistema hospitalar diante da situação de calamidade pública. O país se aproxima da marca de 350 mil vidas perdidas, com projeção de chegar a 500 mil até o final de julho, tendo experimentado, por mais de uma vez, o montante de quatro mil mortes diárias. Este é o contexto trágico no qual se desenhou o julgamento da ADPF.

A Suprema Corte vem construindo, no contexto do horizonte pandêmico, uma jurisprudência da crise, implicando a definição de parâmetros e balizas extraordinários capazes de orientar a atividade dos agentes públicos. A decisão prolatada nesta ADPF se soma a outras robustecedoras da direção que demonstra alta sensibilidade na compreensão da radicalidade do momento. E isto assegurando a eficácia dos preceitos constitucionais, embora interpretados à luz da circunstância, o que obviamente não se confunde com as projeções de um estado de exceção. A legalidade extraordinária, é bom enfatizar, não se equipara à legalidade de exceção.

Embora todos os ministros formadores da maioria tenham agitado robustos argumentos, dignos de nota, a manifestação do ministro Gilmar Mendes, relator do feito, merece consideração especial. Reconhece, e não poderia ser diferente, a importância da liberdade religiosa, a sua fundamentalidade inequívoca, o modo como foi proclamada por distintos documentos internacionais e pela Constituição Federal e o princípio da laicidade, também abrigado pela Lei Fundamental, a impor determinadas obrigações ao estado brasileiro e seus agentes, tendo como consequência, de outro lado, a emancipação da república em relação à esfera espiritual e às autoridades religiosas. Nenhuma interpretação, enfatiza, ocorre no vazio, sendo importante ver, a um tempo, nos termos da lição de Müller, programa e âmbito normativos.

Ora, o âmbito normativo, o recorte da realidade sobre o qual incide o programa, é chave para a correta leitura dos dispositivos constitucionais tratando da liberdade religiosa em momento pandêmico. Além disso, importa reconhecer a existência de distintas dimensões do direito em questão. A dimensão interna consiste na liberdade de crença presente no foro íntimo, a consciência espiritual, enquanto a dimensão externa diz respeito à liberdade de culto, realizando-se como fé publicamente vivida com as possibilidades, positivas e negativas, que as reuniões e ritos externos, no espaço público, podem desafiar. Ora, a liberdade religiosa na dimensão interna é direito absoluto, enquanto na dimensão externa é limitado, ostentando natureza principiológica, como a maioria dos direitos contemplados no catálogo constitucional. Pode, portanto, sofrer restrição, observado o postulado da proporcionalidade, nas situações de colisão com outros direitos fundamentais, princípios ou valores inscritos na Lei Fundamental.

Na verdade, bem pensada a questão, não é o direito à liberdade religiosa que está sujeito a restrições, mas, antes, a forma como ele é exercido. E, neste ponto, não cabe admitir a criação de espaços de imunidade capazes de impedir ao poder público o lançar mão de medidas restritivas adequadas e necessárias para a satisfação do dever de agir inscrito no art. 196 da CF para a tutela da saúde, considerado o fato de que os direitos fundamentais não se apresentam apenas como proibições de intervenção, veiculando também uma ordem de proteção, decorrendo, em consequência, proibições de excesso, por um lado, e de proteção insuficiente, por outro.

A vedação de reuniões em templos religiosos ou de cultos com presença física constitui medida (i) adequada nos termos dos conhecimentos até aqui oferecidos pelas autoridades científicas e partilhados pelo consenso médico e (ii) necessária quando inexistentes outras alternativas menos restritivas à disposição que possam entregar resultado análogo. Ora, este caminho foi seguido por inúmeros países exatamente para evitar o contágio e a transmissão do vírus que começam exatamente nos momentos de aglomeração de pessoas. Por fim, passa incólume pelo teste da (iii) proporcionalidade em sentido estrito.

Aqui, o grau de satisfação do fim alcançado (com a ponderação) não pode ser inferior à grandeza da restrição admitida. Pois o ministro Gilmar Mendes, corretamente, no que foi seguido pelos seus pares, considerou ser possível “afirmar que há um razoável consenso na comunidade científica no sentido de que os riscos de contaminação decorrentes de atividades religiosas coletivas são superiores ao de outras atividades econômicas, mesmo aquelas realizadas em ambientes fechados”. E mais, que a edição do ato impugnado seguiu as recomendações da ciência, inclusive o inteiro teor de Nota Técnica do Centro de Contingência do Coronavírus de São Paulo que serviu de fundamento à sua edição. A Nota sugere, diante do número crescente de novos casos a proibição irrestrita “da realização de atividade coletivas, como eventos esportivos, atividades religiosas e, ainda, reunião, concentração ou permanência de pessoas em espaços públicos como praias, praças e parques.”

Trata-se, portanto, de medida temporária, não discriminatória, geral e, mais do que isto, justificada pelo mais avançado conhecimento científico compartilhado no momento. É, então, materialmente constitucional. Uma condição que, aliás, sofre reforço na medida em que são consideradas, segundo apontou o ministro Barroso no seu voto, as capacidades institucionais. É claro que o Executivo está melhor aparelhado para enfrentar a pandemia e dispor sobre as medidas indispensáveis ao seu enfrentamento do que o Poder Judiciário. Havendo dúvida, e no caso, à luz dos parâmetros oferecidos pela ciência, não há, deve prevalecer a decisão do primeiro e não do segundo.

A proibição de cultos veiculada por decreto de coletividade federada também não viola a Constituição do ponto de vista formal. No julgamento da ADI 6341, a Suprema Corte decidiu que todos os entes políticos dispõem de competência para legislar e adotar medidas sanitárias voltadas ao enfrentamento da pandemia de Covid-19, nos termos do art. 23 da CF e da conformação do Sistema Único de Saúde (Lei 8.080, de 1990). A Lei 13.979/2020, impugnada naquela ADI, previa no art. 3º. como possíveis alternativas a serem adotadas pelas autoridades, no âmbito de suas competências, as medidas de isolamento e de quarentena. Daí a razão pela qual cumpre considerar a legitimidade do ato normativo introduzido de acordo com o decidido naquela ação de controle abstrato. Aliás, há vários precedentes da Corte trilhando semelhante caminho.

Não custa lembrar, para concluir, que não são poucos os julgados de Tribunais estrangeiros tratando do tema. É recomendável, na medida do possível, conhecê-los. Mas, admitindo ou inadmitindo a proibição geral, temporária e não discriminatória dos templos religiosos e rituais com a presença física dos fiéis, o direito comparado deve ser tomado com enorme dose de cuidado. O âmbito normativo, o contexto, a situação fática, o espaço e o tempo são determinantes da melhor solução. Daí a razão pela qual importa, sobretudo, considerar a jurisprudência da Corte local e a coerência das decisões que toma durante a pandemia com a gravidade com a qual se apresenta neste país. Essencial, pois, é levar a sério a jurisprudência da crise que vem sendo, paulatina e cuidadosamente, construída. Neste particular, como demonstra o julgamento em questão, o Supremo Tribunal Federal tem feito a sua parte.