Aspectos Gerais do Regime Fiscal Extraordinário – considerações a respeito das Emendas Constitucionais de nº 106 e 107 e da Lei Complementar de nº 173/2020

No Brasil, a perspectiva jurídica do fenômeno financeiro – atividade financeira do Estado –  está contida no denominado “Sistema Constitucional Financeiro”. Referido “Sistema Constitucional Financeiro” será responsável por garantir, segundo Heleno Torres, (i) unidade; (ii) completude e (iii) coerência da atividade financeira do Estado. Tal fato é possível porque a Constituição Federal de 1988 reúne “todos os princípios, valores, competências e garantias definidores do conteúdo do direito financeiro” (TORRES, 2014, p. 40).

A Constituição Financeira “consiste na parcela material de normas jurídicas integrantes do texto constitucional, composta por princípios fundamentais,  competências e os valores que regem a atividade financeira do Estado na Unidade entre a obtenção de receitas do orçamento, realização de despesas, gestão do patrimônio estatal e controles internos e externos, bem como da intervenção do Estado na relação com as Constituições econômicos ou social”. Em outras palavras: é a partir do texto Constitucional que o regime fiscal a ser seguido pelos entes da Federação é instituído (TORRES, 2014, p. 40).

E foi a partir da Constituição Federal de 1988 que o denominado Regime Fiscal Ordinário foi introduzido no ordenamento jurídico nacional e vem sendo construído ao longo dos anos, como uma grande obra arquitetônica.

É possível afirmar que o Regime Fiscal Ordinário, no que diz respeito à gestão orçamentária do planejamento e da execução da despesa pública é composto, basicamente, de quatro pilares: (i) o primeiro é a regra de ouro, materializada no artigo 167, inciso III da Constituição Federal; (ii) o segundo é a introdução, por meio da Emenda Constitucional de nº 95, do artigo 107 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal, que inseriu o denominado “Teto de Gastos”; (iii) o terceiro diz respeito à exigência da estimativa do impacto das proposições orçamentárias (artigo 113 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias) e, por fim, das regras específicas a respeito da gestão com o pessoal, materializadas no artigo 169 do referido texto (Nota Técnica de nº 20/2020 Congresso Nacional).

Do ponto de vista infraconstitucional as regras do Regime Fiscal Ordinário materializam-se por meio de Leis Complementares, eis que são os instrumentos normativos por excelência do Federalismo. Tal mecanismo legislativo tem como finalidade garantir a estabilidade e a redução de divergências entre as unidades descentralizadas (TORRES, 2014, p. 315). No nosso ordenamento, destacam-se duas normas gerais: a Lei de nº 4.320/1964 (Lei da Contabilidade Pública Nacional) e a Lei 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal).

O Regime Fiscal Ordinário, relacionado à gestão da execução orçamentária no tocante à despesa pública, utiliza-se da Lei de Responsabilidade Fiscal para fortalecer os seus pilares. Ao verticalizar os temas indicados na Constituição Federal, a Lei de Responsabilidade Fiscal introduz regras de (i) gestão de pessoal (artigos 18-23); (ii) aumento de despesas (artigos 15-17) e de despesas de duração continuada (artigo 17); (iii) metas fiscais e contigencimento (artigo 4º e 9º). Não há como deixar de relatar que é a Lei de Responsabilidade Fiscal que cria o Estado de Calamidade em seu artigo 65.

Contudo, trata-se de um regime fiscal ordinário. Situação muito distinta do atual contexto. A Pandemia do COVID-19 apresentou ao agente político, em especial, aos ocupantes dos cargos eletivos do Poder Executivo, desafios únicos. A queda brutal de receita pública, por um lado, em razão da crise econômica gerada, por outro, o aumento substancial dos gastos públicos ocasionados pelo uso expressivo do Sistema Ùnico de Saúde. Surge, então, a necessidade de criação de mecanismo que permitam a oxigenação do Regime Fiscal Ordinário de forma a introduzir caminhos flexíveis para uma gestão que demanda liquidez e rapidez, contudo, respeitando os pilares da transparência e publicidade.

O Regime Fiscal Extraordinário é, portanto, introduzido a partir de duas emendas constitucionais. A primeira de nº 106, sob a ótica da execução do orçamento, e a segunda de nº 107 – preocupada com questões eleitorais. Tais emendas, inicialmente, suspendem, ao longo da calamidade pública e até 31 de dezembro de 2021, parte dos pilares delimitados pelo Regime Ordinário Fiscal, descrito na Constituição. Inicialmente, a EC de nº 106 seria aplicada a União, mas aplica-se, de forma simétrica, aos demais entes. A Lei Complementar de nº 173/2020, aplicada a todos os entes da Federação, verticalizou o Regime Fiscal Extraordinário cujo objetivo é estabilizar, ainda mais, a atividade financeira do Estado.

Desde já é importante deixar claro que o Regime Fiscal Extraordinário pressupõe o Estado de Calamidade e possui, como outras normas de planejamento financeiro (leis que compõe o Sistema Orçamentário – LPP, LDO e LOA) – prazo de vigência pré-determinado (a vigência se estenderá até 31 de dezembro de 2021). A peculiaridade é que, de fato, as contas poderão ser prestadas de forma segregada pelo Administrador Público.

Ponto que deve ser delimitado é que o Regime Fiscal Extraordinário criado pelo conjunto normativo acima delimitado é uma resposta Nacional para o enfrentamento do COVID-19. Logo, o planejamento é realizado de forma a atender a Federação e os entes que a compõe.

Ao tratar de Direito Financeiro, números são importantes. Segundo o Estudo da Câmara de Deputados – Nota Informativa de nº 21, de 2020, o Programa Federativo de Enfrentamento ao COVID, prevê, no total, uma aplicação de R$ 242,89 (duzentos e quarenta e dois bilhões e oitocentos e noventa milhões de reais). Como gerir os recursos acima mencionados é o grande desafio.

De forma geral, é importante salientar que a emenda Constitucional de nº 106 afastou, no âmbito constitucional, (i) a regra de ouro e (ii) flexibilizou gastos com o pessoal – para contratação temporária. Em relação ao aumento de despesas, flexibilizou regras no tocante ao gastos que tem como objetivo o enfrentamento ao vírus. Contudo, a EC de nº 106 não flexibilizou o teto e tampouco as exigências relacionadas às estimativas de impactos orçamentários.  A EC de nº 107, por sua vez, que adiou, em razão da pandemia da Covid-19, as eleições municipais de outubro de 2020 e os prazos eleitorais respectivos, criou regras bem específicas a respeito da contratação pública. Por fim, a Lei complementar de nº 173/2020, além de tratar dos temas enumerados na EC de nº 106, criou vedações que, sem dúvidas, trarão reflexos para os próximos anos, em especial, a gestão do pessoal. São elas: (i) vedação de aumento salarial, (ii) vedação a criação de cargos.

A adoção do Regime Fiscal Extraordinário deverá, sem dúvida, obedecer uma perspectiva funcionalista do Direito Financeiro, o qual é, por sua vez, marcado por uma ótica, nas palavras de Fernando Facury Scaff, substancialista, eis que agrega ao Direito Financeiro aspectos axiológicos e teleológicos. Tais aspectos, por sua vez, não são novos. Em verdade, estão descritos na Constituição Federal de 1988. Fernando Facury Scaff esclarece que: “no Brasil, essa finalidade e esse conteúdo constam dos fundamentos (artigo 1o.) e dos objetivos fundamentais (artigo 3) da Constituição” (SCAFF, 2018, p.81).