Artigo: Honorários Advocatícios e Eleições 2020: os reflexos da Lei n. 13.877/2019 na regulamentação do financiamento das campanhas eleitorais

1.Contextualização. O novo modelo de financiamento eleitoral previsto para as Eleições 2020

Não é de hoje que o estudo do financiamento político[1] trata-se de uma tendência mundial. A influência do dinheiro no processo político – fenômeno típico das democracias modernas – consiste em objeto de preocupação dos mais variados campos do conhecimento (a exemplo da ciência política, da economia e do direito). Embora não haja consenso acerca do melhor modelo de financiamento político a ser adotado, é certo que não há dúvidas de que – independentemente do modelo de financiamento político acolhido no país – dois pressupostos devem ser atendidos: (i) o custeio da atividade política deve ser regulamentado e (ii)  a exigência de transparência e  publicidade deve estar presente nas medidas legislativas e administrativas que disciplinam a matéria. No caso brasileiro, no que toca às regras de custeio das campanhas eleitorais, importa fazer menção à Lei n. 9.504/97 (Lei das Eleições) e às resoluções do Tribunal Superior Eleitoral – sempre editadas até a data limite de 05 de março de cada ano eleitoral – que tratam sobre a arrecadação e os gastos realizados por partidos políticos e candidatos e sobre a prestação de contas nas eleições.

As campanhas eleitorais de 2016 foram a primeira experiência sem a possibilidade de financiamento por meio de pessoas jurídicas desde que essa forma de custeio fora institucionalizada no Brasil. É que, como se sabe, no ano anterior (2015), o Supremo Tribunal Federal, em sede de Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (ADI n. 4650) no ano de 2013, declarou a inconstitucionalidade do modelo de financiamento por pessoas jurídicas então previsto na legislação eleitoral[2]. Assim, para as eleições de 2016, as possíveis fontes de financiamento consistiam em: pessoas físicas (aqui incluindo o financiamento por parte do próprio candidato até o limite de gastos do respectivo cargo em disputa) e fundo partidário. É claro que essa variável (insuficiência de recursos financeiros – vale lembrar que o grande volume de doações era oriundo de pessoas jurídicas) somada à variável da redução do tempo de campanha eleitoral (de 3 meses caiu para 45 dias) influenciou fortemente na dinâmica do processo eleitoral e, pois, na qualidade da democracia. Não é demais lembrar que, em razão da substancial diminuição dos recursos financeiros que eram aplicados nas campanhas eleitorais, houve significativa redução da propaganda eleitoral e, por consequência, menos informação ao eleitor e menos debate e circulação de ideias e, ainda, menos estrutura para as campanhas eleitorais – note-se que a ausência de recursos financeiros para o custeio da atividade política impacta em todas as frentes de uma campanha eleitoral (marketing, jurídico, contabilidade, equipe administrativa e de logística, etc..).

Em razão desse cenário, em 2017, houve uma reação do Congresso Nacional. Por meio da Lei n. 13.487/2017, criou-se o Fundo Especial de Financiamento de Campanhas – FEFC, o chamado “fundão”. Esse fundo é constituído por dotações orçamentárias da União em ano eleitoral e, consoante o próprio nome já sugere, trata-se de uma fonte de recursos públicos que podem ser utilizados para adimplir gastos eleitorais. Portanto, todas as despesas que a lei eleitoral considera como “gastos eleitorais” (art. 26 da Lei n. 9.50497) podem ser pagas através de recursos financeiros oriundos do FEFC.

Esse novo modelo de financiamento de campanhas eleitorais – agora preponderantemente público – foi aplicado, pela primeira vez, nas eleições gerais de 2018. Se, por um lado, estava claro que o Fundo Especial de Financiamento de Campanhas – FEFC poderia ser aplicado para o pagamento de tudo o que fosse considerado gasto eleitoral; por outro lado, ainda encontrava-se numa zona cinzenta o entendimento acerca da natureza dos honorários advocatícios; isto é, se consistiam ou não em gastos eleitorais e, por isso mesmo, se poderiam ou não ser adimplidos com recursos do FEFC (afinal, não se nega que a assistência jurídica faz-se imprescindível no processo eleitoral).

O TSE, seguindo a mesma racionalidade da disciplina aplicada para as eleições municipais de 2016 (Resolução n. 23.470/2016), estabeleceu, por meio da Resolução n. 23.553 de 2017, que (i) os honorários relativos aos serviços de consultoria jurídica constituíam gastos eleitorais e (ii) os honorários referentes à contratação de serviços de advocacia referentes à defesa de interesses de candidato ou de partido político em processo judicial não poderiam ser pagos com recursos de campanha, uma vez que não constituíam gastos eleitorais – de modo que caberia o registro dessa prestação de serviços tão somente nas declarações fiscais das pessoas envolvidas. Logo, para a campanha eleitoral de 2018, a regra, em síntese, era a seguinte: os honorários advocatícios decorrentes de consultoria jurídica, por se tratarem de gastos eleitorais, poderiam ser pagos com recursos do FEFC; todavia, em razão de se encontrarem fora do escopo do que a lei eleitoral considera “gasto eleitoral”, os honorários advocatícios decorrentes do contencioso eleitoral não poderiam ser adimplidos com os recursos do FEFC. Apenas a título de informação, em razão dessa distinção entre os honorários advocatícios de consultoria e de contencioso eleitoral, houve até quem defendesse que essa segunda prestação de serviços, por se tratar de um “indiferente eleitoral” – isso porque o próprio TSE expressamente excluía a atividade da relação dos gastos eleitorais -, poderia ser paga por terceiros e até por pessoas jurídicas.

E como ficou a disciplina do pagamento de honorários advocatícios nas eleições deste ano? Em primeiro lugar, vale lembrar que as campanhas municipais experimentarão a possibilidade de aplicação do Fundo Especial de Financiamento de Campanhas – FEFC, pela primeira vez, agora em 2020. Assim, diferentemente do cenário de escassez de recursos presente em 2016, para este ano, a tendência é que as campanhas – pelo menos nos grandes centros urbanos – contem com mais dinamicidade e melhor estrutura. Quanto à regulamentação do custeio dos honorários do(a) advogado(a) contratado(a) pela campanha, a Lei n. 13.877/2019, que alterou a Lei das Eleições, trouxe significativa mudança para o regime jurídico da prestação de serviços advocatícios e, consoante será descrito a seguir, consolida a natureza jurídica dos honorários advocatícios na seara eleitoral.

 

2. Honorários advocatícios e as inovações trazidas pela Lei n. 13.877/2019

A primeira modificação – trazida pela Lei n. 13.877/2019 – que merece especial atenção encontra-se no parágrafo único do art. 18-A da Lei das Eleições. Veja-se o que estabelece o dispositivo em questão:

Art. 18-A.  Serão contabilizadas nos limites de gastos de cada campanha as despesas efetuadas pelos candidatos e as efetuadas pelos partidos que puderem ser individualizadas.

Parágrafo único. Para fins do disposto no caput deste artigo, os gastos advocatícios e de contabilidade referentes a consultoria, assessoria e honorários, relacionados à prestação de serviços em campanhas eleitorais e em favor destas, bem como em processo judicial decorrente de defesa de interesses de candidato ou partido político, não estão sujeitos a limites de gastos ou a limites que possam impor dificuldade ao exercício da ampla defesa (grifou-se)

Da leitura do parágrafo único, parece claro que o legislador pretendeu conferir o mesmo tratamento aos honorários advocatícios referentes à consultoria jurídica e àqueles referentes à atuação em processo judicial decorrente de defesa de interesse de candidato ou partido político. Se o texto normativo prevê – trazendo uma exceção à regra – que tanto os honorários de consultoria quanto os de contencioso eleitoral não estão sujeitos a limite de gastos, é certo que considera que os honorários advocatícios decorrentes das duas atividades constituem-se gastos eleitorais. E, ao que parece, neste parágrafo único, o legislador expressamente fez menção às duas formas de atuação jurídica para fins de deixar de claro que, diferentemente do que por dois anos constou nas resoluções do TSE, o contencioso eleitoral também deve ser considerado gasto eleitoral e, por isso, pode ser adimplido com qualquer recurso de campanha.

Para além de pacificar que os honorários advocatícios – independentemente do tipo de atuação – consistem em gastos eleitorais, a novel legislação trouxe outras relevantes alterações relacionadas ao adimplemento desses gastos eleitorais.

O art. 23, § 10, da Lei n. 9.504/97, estabeleceu que o pagamento efetuado por pessoas físicas, em decorrência de honorários advocatícios, não constitui doação de bens e serviços estimáveis em dinheiro e tampouco pode ser considerado para aferição do limite de doação previsto para as pessoas físicas (10% do rendimento bruto do ano anterior ao pleito).  Ou seja, a lei admite que terceiros possam pagar os honorários do(a) advogado(a) contratado(a) pela campanha eleitoral sem que esse ato possa ser considerado como a doação de pessoa física prevista no art. 23, § 1º, da Lei 9.504/97. Ainda, os §§ 1º e 2º, do art. 27, da Lei n. 9.504/97 – também trazidos pela reforma de 2019 – autorizam que, para além de o pagamento de honorários advocatícios por terceiros não consistir em doação eleitoral, esse pagamento fica excluído do limite de um mil UFIR, não sujeito a contabilização, que cada eleitor pode realizar em prol do candidato/partido de sua preferência. Assim, para este ano, encontra-se no campo da legalidade a possibilidade de apoiadores (pessoas físicas, por certo) apoiarem o candidato através do pagamento de advogados(as) e contadores(as) – embora aqui não tenha sido mencionado, a lei também prevê esse regime jurídico para a atividade de contabilidade. Vale a ressalva, contudo, que, a despeito da expressa disposição legal no sentido de que esses valores destinados ao pagamento de honorários advocatícios prescindam de contabilização, é possível que a Justiça Eleitoral – com respaldo nos princípios da transparência e da publicidade – através da técnica da interpretação conforme à Constituição – passe a exigir o registro do pagamento dos honorários por terceiro na prestação de contas de campanha.

Por fim, o art. 26 da Lei n. 9.504/97, que traz a relação do que a legislação considera gastos eleitorais, prevê (de forma reiterada), especificamente em seu § 4º, que as despesas com honorários advocatícios no curso das campanhas eleitorais constituem-se em gastos eleitorais, mas não estão limitadas ao teto de gastos da respectiva campanha. Além disso, para não deixar qualquer dúvida sobre a possibilidade de pagamento dos honorários advocatícios com os recursos públicos oriundos do FEFC, o § 5º prevê que todas as despesas eleitorais previstas no art. 26 e, inclusive aquelas decorrentes de honorários advocatícios (despesas que constam no parágrafo por que se constituem – como já dito – exceção ao teto de gastos), podem ser adimplidas com recursos da campanha, do candidato, do fundo partidário ou do FEFC.

 

3. Considerações finais

As alterações trazidas pela Lei n. 13.877/2019 em relação ao regime jurídico aplicado ao custeio dos honorários relativos à prestação de serviços advocatícios nas campanhas eleitorais tem sido objeto de inúmeras críticas[3], em especial em razão da possibilidade de o pagamento do contencioso eleitoral ser efetuado por meio de recursos públicos. Entretanto, advoga-se que não há qualquer óbice – constitucional ou moral- no uso de recursos públicos para fins de remunerar a prestação de serviços advocatícios decorrentes da atuação em demandas judiciais para defender interesses de candidato ou partido.

Em primeiro lugar, há que se levar em conta a natureza do processo jurisdicional eleitoral. Aqui, no contencioso eleitoral, deve-se ter claro que o bem jurídico tutelado é a legitimidade e fidedignidade do voto, de modo que o interesse envolvido na demanda, portanto, é público. Ou seja, no campo do direito eleitoral, quando o advogado(a) atua está auxiliando na preservação das regras do jogo e não para garantir, precipuamente, direito subjetivo particular/individual do candidato ou candidata. Ademais, consoante bem observado em artigo escrito pelo advogado e ex-ministro do TSE, Henrique Neves, é certo que “em última análise, se o acusado não tiver condições de pagar sua defesa, a Defensoria Pública ou a advocacia dativa, também com o uso de recursos públicos, será chamada a atuar”.[4]

Por último, em relação à previsão legal de que os honorários advocatícios decorrentes de prestação de serviços durante a campanha, embora consistam em autênticas despesas eleitorais, não devem limitar-se ao teto de gastos da campanha, defende-se que essa regra é adequada e razoável. Até porque, eventual exigência de que os honorários advocatícios estivessem vinculados ao limite de gastos da campanha incidiria em inconstitucionalidade.  É que, sobretudo em eleições municipais – em que há inúmeras campanhas com tetos de gastos bastante reduzidos -, é certo que restrição como essa acabaria por limitar o direito de defesa do(a) candidato(a). Note-se que, se assim fosse, os candidatos seriam – possivelmente – obrigados a utilizar quase todo seu recurso de campanha para remunerar a prestação dos serviços advocatícios; eventualmente utilizariam recursos de fonte duvidosa; ou, remunerariam os (as) advogados(as) em valores que não seriam dignos à advocacia.

Assim, defende-se que, em linhas gerais, as mudanças operadas pela Lei n. 13.877/2019 foram positivas na medida em que, a um só tempo, prestigia a advocacia – função essencial à Justiça e à Democracia – e preserva o direito de defesa no contencioso eleitoral.

[1] Nesta introdução, utiliza-se a expressão “financiamento político” para abranger as duas principais modalidades de interferência do capital no processo político: o financiamento das campanhas eleitorais e o financiamento dos partidos políticos.

[2] Questionava-se a constitucionalidade do modelo de financiamento – previsto no art. 81 da Lei 9.504/97 – que permitia à pessoa jurídica doar às campanhas eleitorais até 2% (dois por cento) do seu faturamento bruto do ano anterior à eleição.

[3] Por todos, cita-se GONÇALVES, Luiz Carlos dos Santos. Honorários advocatícios e as alterações na lei eleitoral. Disponível em: https://www.jota.info/carreira/honorarios-advocaticios-e-as-alteracoes-na-lei-eleitoral-21102019. Acesso em: 23 de agosto de 2020.

[4] SILVA, Henrique Neves da. Limitação aos honorários advocatícios. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/limitacao-aos-honorarios-advocaticios-17092019. Acesso em: 24 de agosto de 2020.

 

*Artigo publicado edição de agosto da Revista da Ordem